quinta-feira, novembro 19, 2009

O triunfo de uma sonhadora

Texto retirado daqui: http://www.ionline.pt/conteudo/33682-o-triunfo-uma-sonhadora


"De todas as vezes que alguém lhe disser que um sonho é impossível e sempre que se sentir desalentado face a desafios impossíveis de ultrapassar, murmure «Tererai Trent».

De todas as pessoas que ambicionavam uma licenciatura este ano, talvez a história mais notável seja a de Tererai, uma mulher de meia-idade que se tornou um dos meus heróis. O seu triunfo pessoal é também um monumento às organizações e aos indivíduos que a ajudaram. Da próxima vez que ouvir dizer que os grupos de assistência internacionais esbanjam dinheiro e criam dependência, lembre-se que Tererai tinha absolutamente todas as probabilidades de continuar a ser uma pastora analfabeta no Zimbabué e que, em vez disso... ah, mas estou a ir depressa de mais.

Tererai nasceu numa aldeia perdida nas zonas rurais da Rodésia, hoje Zimbabué, provavelmente por volta de 1965, e frequentou a escola primária durante menos de um ano. O pai tinha-a casado quando ela tinha cerca de 11 anos com um homem que lhe batia. Parecia destinada a tornar-se mais um activo africano desperdiçado.

Passou-se assim uma dúzia de anos. Jo Luck, chefe de um grupo de assistência chamado Heifer International, passou pela aldeia e disse às mulheres que deviam afirmar-se, alimentar sonhos, mudar as suas vidas.

Entusiasmada, Tererai escrevinhou quatro objectivos absurdos, retirados de feitos que ouvira vagamente terem sido alcançados por africanos famosos. E escreveu: estudar no estrangeiro, tirar a licenciatura, fazer um mestrado e um doutoramento.

Tererai começou a trabalhar para a Heifer e para várias organizações cristãs, como organizadora comunitária. Usou o que aí ganhava para tirar cursos por correspondência, poupando todos os tostões que podia.

Em 1998, foi aceite na universidade estadual do Oklahoma, mas insistiu em levar consigo os cinco filhos, que não queria deixar para trás com o marido. «Não podia abandonar os meus filhos», recorda. «Sabia que acabariam por ser obrigados a casar.»

O marido de Tererai acabou por concordar em que ela levasse as crianças para os EUA... desde que ele fosse também. A Heifer deu uma ajuda com as passagens aéreas, a mãe de Tererai vendeu uma vaca e alguns vizinhos venderam cabras para ajudarem a angariar dinheiro. Com 4 mil dólares embrulhados numa meia que atou à cintura, Tererai partiu para o Oklahoma.

Tinha-se realizado um sonho impossível, que depressa se começou a parecer com um pesadelo. Tererai e a família tinham pouco dinheiro e viviam numa roulotte em mau estado, passando frio e fome. O marido recusou-se liminarmente a fazer qualquer espécie de tarefa doméstica. Afinal era um homem! E resolvia as suas frustrações desancando a mulher.

«Havia muito pouca comida», conta Tererai. «As crianças vinham da escola e não tinham o que comer.» Tererai pensou em desistir, mas sentiu que se o fizesse seria uma desconsideração para com outras mulheres africanas.

A universidade resolveu expulsar Tererai por atraso nas propinas. Um responsável da universidade, Ron Beer, interveio em defesa dela e sensibilizou o corpo docente e a população local para a ajudarem com donativos e apoio. «Vi que ela tinha um enorme talento», diz Beer.

Pouco tempo depois, Tererai conseguiu que o marido fosse deportado para o Zimbabué por lhe bater e obteve a sua licenciatura. E começou a estudar para o mestrado. O marido voltou a juntar-se-lhe, agora fragilizado e enfermo com uma doença que se veio a revelar ser sida. Tererai fez exames, que deram negativo para VIH. Sentindo pena do marido, acolheu o seu antigo algoz e cuidou dele até ele morrer.

No meio de todo este panorama de pressões e dificuldades, Tererai continuava a ter excelentes resultados nas aulas, estudando para um doutoramento na universidade do Michigan Ocidental e preparando uma tese sobre prevenção de sida em África. Voltou a casar-se, desta vez com Mark Trent, um fitopatologista que conhecera na universidade estadual do Oklahoma.

Tererai é a prova de que o talento é universal, embora as oportunidades não o sejam. Há ainda 75 milhões de crianças em todo o mundo que não frequentam sequer a escola primária. Poderíamos dar a todas uma educação capaz por muito menos do que o custo do reforço militar proposto para o Afeganistão.

De cada vez que Tererai alcançou um dos objectivos que tinha escrevinhado num papel tanto tempo antes, era nesse papel, já amarrotado, que assinalava o respectivo cumprimento. No mês passado, assinalou o cumprimento do derradeiro objectivo, depois de ter defendido a tese com êxito. Vai receber o seu doutoramento no mês que vem. E eis como uma antiga pastora pobre, com menos de um ano de escolaridade, vai ganhar a sua batina e tornar-se a Professora Doutora Tererai Trent."

por Nicholas Kristof
Publicado em 19 de Novembro de 2009

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