[Texto que descobri em pesquisas para o Relatório de Estágio. Ao que parece, saiu na Visão nº 588, de 9 de Junho de 2004.]
"QUEM É: Professora de enfermeiras obstetras, Sheila Kitzinger, 75 anos, corre mundo a falar da experiência do parto. Filha de uma parteira – que criou uma das primeiras clínicas de planeamento familiar, no Reino Unido –, percebeu, quando entrou para a faculdade, em Oxford, que toda a antropologia social andava à volta de visões masculinas.
CONDECORAÇÕES
Agraciada com a Ordem do Império Britânico, pelos seus serviços à educação sobre o parto.
LIVROS
Mais de 20. Três – Mães, A Experiência do Parto e Um Estudo Antropológico da Maternidade – estão disponíveis em português.
Polémica, esta antropóloga social conseguiu pôr o nascimento na lista de prioridades dos políticos.
Mãe cinco vezes e avó outras três, sempre de bebés nascidos em casa, Sheila Kitzinger não tem dúvidas de que o parto pode ser uma experiência altamente sexual. Para a antropóloga social, obrigar as mulheres a parir numa cama é «uma tortura» e a generalização da episiotomia (corte do períneo para evitar rasgões naturais, durante o parto) é a «mutilação genital feminina» do Ocidente. Assim fala a mulher referida pelos jornais britânicos como Mother of Birth (mãe do parto) do Reino Unido e graças a quem o seu país se tornou um dos mais avançados em termos de prática obstétrica.
Visão: O que fez para ser considerada a «mãe do parto», no Reino Unido?
SHEILA KITZINGER: No passado, o nascimento era considerado uma acto pessoal e biológico, tão antigo que não havia nada para dizer sobre ele. Eu fui a primeira pessoa a falar do parto como uma experiência. Não importa apenas se a mulher e o bebé estão vivos e de boa saúde, mas também como foi a experiência para a mãe. Isso tem implicações na forma como vai encarar a maternidade, a sua relação com o bebé e com o pai. Comecei a falar disto há 40 anos.
O que há de novo, na experiência do parto?
O nascimento tem a ver com a política, a identidade das mulheres, a forma como se relacionam com os homens e com os profissionais. Quando uma mulher dá à luz, é o parto dela, o bebé dela, o corpo dela. Devia poder escolher o que quer que aconteça. A grávida devia poder escolher uma parteira e só ter um obstetra quando há riscos envolvidos. São mais seguros os cuidados de uma parteira, desde a gravidez até ao nascimento.
Como é que o trabalho de uma parteira é mais seguro do que o de um obstetra?
As parteiras são especialistas em partos normais. Os obstetras, em partos anormais. Quando se trata o parto normal como se fosse anormal, acaba por se fazer dele anormal: intervém-se, administram-se drogas, estimula-se o útero para uma actividade artificial. E isso é perigoso.
Que perigos têm essas intervenções médicas?
Quando se estimula o útero de forma desnecessária, pode-se bloquear o fluxo sanguíneo na placenta, o que reduz o sangue oxigenado para o bebé. Além disso, as contracções são muito dolorosas e as mulheres não as conseguem controlar com relaxamento e respiração. Acabam por precisar de drogas contra a dor. Com essas drogas vêm outros efeitos secundários. É um ciclo. Uma intervenção leva a outra e acaba-se com um parto medicamente assistido.
A maioria das mulheres portuguesas não se queixa de assistência a mais, mas de ninguém as ter ajudado a ter um parto menos doloroso e mais rápido.
O que interessa não é ser mais rápido. Quanto mais rápido, mais doloroso. Se se queixam de muitas horas de trabalho de parto, é porque foram cedo demais para o hospital. Acredito muito no parto em casa. Há provas de que é seguro, quando não há gravidez de risco.
Como se define o risco?
Diabetes, bebés prematuros (menos de 37 semanas de gravidez), mulheres com hemorragias, tensão alta (pré-eclampsia ).
Esses são os riscos predeterminados. O problema pode surgir durante o parto, como o cordão umbilical à volta do pescoço…
Quando o cordão está no líquido amniótico, é como spaguetti no molho. Se se rompem as águas para acelerar o trabalho de parto artificialmente, o bebé desce muito rapidamente e aí o cordão, pode, de facto, estrangular o bebé. Mas, normalmente, o cordão flutua no líquido amniótico e pode estar à volta do pescoço do bebé sem que haja perigo.
E os bebés que não deram a volta para ficarem em posição fetal?
Sim, isso é um problema. Nesses casos, pode fazer-se uma cesariana, mas é melhor voltar o bebé com as mãos.
Como?
Chama-se inversão externa. Pode fazer-se depois das 37 semanas de gestação ou no início do trabalho de parto. Primeiro, massajam a mulher, de forma a que ela fique muito relaxada; a seguir, fazem-na balançar as ancas; e, depois, o médico empurra o bebé pelo rabo e roda-o, aos poucos, até que ele dê a volta, tudo com as mãos em cima da barriga da mãe. Os médicos deviam aprender a fazer isso.
Parece um método muito falível.
Há bebés que voltam à posição inicial, porque gostam mais de estar assim.
Nesse caso, a cesariana impõe-se?
Pode fazer-se cesariana ou um parto normal, desde que seja de pé. O bebé fica pendurado com as pernas de fora até que a cabeça saia devido ao peso do corpo.É outra forma de ter um bebé de rabo.
Esta solução seria mais perigosa?
Não. Depende do tamanho do bebé e do canal pélvico da mãe.
Para isso tudo, são precisas parteiras com muito boa formação.
Sim, claro. Neste momento, ainda não é assim em Portugal. Brevemente, terão três anos só para se especializarem em partos, o que deverá ser suficiente.
Ainda assim, todas essas alternativas parecem coisas arriscadas do passado, que já ninguém se atreve a fazer.
Vocês estão tão atrasados nestas coisas, que pensam assim. No Canadá e noutros países mais desenvolvidos, o trabalho das parteiras está a ser ressuscitado. Os obstetras abordam o nascimento do ponto de vista da patologia. Tratam todas as mulheres como uma ainda-não-doente.
Tendemos a pensar que o obstetra é mais especializado, mais sabedor do que uma parteira.
É verdade, eles são especialistas. Mas podem não saber absolutamente nada sobre partos normais. Alguns nunca viram um.
Será assim porque obstetra é sinónimo de hospitalização?
Sim. Mas, no Reino Unido, as parteiras fazem 70% dos partos nos hospitais. Aqui patologizam o nascimento. Abusam da episiotomia . Feita rotineiramente, é mutilação genital feminina. Falamos da mutilação genital em África, mas nós também a temos. Porquê fazer do nascimento uma cirurgia? Porquê fazer um corte? As mulheres ficam marcadas.
Marcadas, como?
Nos anos 70, fiz um estudo sobre a vivência das mulheres a quem foram feitas episiotomias . Havia muita investigação, mas todas sobre a forma como se faz o corte ou como se cose, nunca sobre os sentimentos das mulheres. Às vezes, o corte é apertado e a costura muito pequena, de forma que não podem ter relações a seguir. Uma episiotomia é um corte de terceiro grau, o que significa que vai até ao ânus. É como um velho lençol, se não se fizer um corte, é mais difícil de rasgar.
O princípio não é o mesmo para o corte natural?
Não. As investigações mostram que não se estende tanto como um corte artificial. Geralmente, a cura é mais fácil, depois de um rasgão natural. O ideal é o nascimento ser mais suave e vagaroso. Aí, gradualmente, os tecidos podem alargar-se, como as pétalas de uma flor ao sol.
Mas, dessa forma, não é mais moroso?
É, mas também mais agradável. Pode ser muito excitante. Isto são os nossos órgãos sexuais.
A versão do sofrimento do parto é muito mais frequente do que a do prazer e excitação.
Que triste! O nascimento é uma experiência psicossexual. O desejo de empurrar o bebé para fora pode ser fortemente sexual. Se a mulher seguir o seu próprio ritmo e estiver em contacto com o útero, pode ser muito excitante. Sim, há dor, mas ela é pouco importante, comparada com a emoção, desde que haja o ambiente certo.
O que é o ambiente certo para um nascimento?
Tem, sobretudo, a ver com as pessoas que estão à volta da mulher. Deitada na cama, fica numa posição terrível. Pior, só pendurada de cabeça para baixo. De pé, pode ser bom, ou de gatas, ou sentada na beira da cama, com as pernas bem abertas, ou mesmo de joelhos. Até o bebé sair, a mulher sente a necessidade de mexer as ancas, de fazer uma espécie de dança do nascimento, o que se torna impossível se for obrigada a estar na cama.
Se toda a gente acha que uma cama de hospital não é o melhor ambiente para se ter um bebé, porque é que continua a ser assim?
Está a mudar, mas não suficientemente depressa. Na Holanda, 30% das mulheres têm os filhos em casa e não é mais perigoso, desde que não haja riscos associados. Só é preciso uma ligação próxima ao hospital, o que deve ser tratado pela parteira. As coisas só mudarão se as mulheres derem as mãos às parteiras e trabalharem juntas, no mesmo sentido. Precisamos de profissionais muito boas para os partos serem mais seguros e positivos para as mulheres e as famílias. Hoje, em Inglaterra, muitas mães têm os bebés numa pequena piscina. A minha filha teve três filhos assim, em casa.
Na piscina, não há o perigo de o líquido amniótico sufocar a criança?
Faz falta mais investigação, porque é uma forma moderna de dar à luz. A grande vantagem de ter um bebé na água é que as margens da piscina impedem outras pessoas de estar em cima de nós. Nos hospitais, há sempre muita gente a dar ordens. Dizer à mulher para fazer força, no momento do parto, é como mandá-la ter um orgasmo quando está a ter relações. Não é preciso. Ela sabe muito bem o que tem a fazer.
É o instinto a funcionar?
É o nosso próprio mundo. Na piscina, somos livres de nos mexermos como queremos.O meu neto tinha 4 quilos e a mãe nem sequer teve um rasgão. Pôs-se de gatas e o bebé saiu por trás. Não foi preciso ninguém dizer-lhe nada. É muito triste que estas coisas não aconteçam em Portugal! Aqui, transformaram o parto numa tortura, sem necessidade nenhuma. As mulheres têm de fazer pressão para a mudança!
Em casa, não há monitorização do bebé. Como se pode fazer um parto em segurança?
As parteiras têm um pequeno scanner portátel que lhes permite ouvir o bebé, o que fazem de forma intermitente. Não é preciso estar a ouvir o bebé a toda a hora. As investigações mostram que utilizar o scanner é tão seguro como usar um aparelho mais complicado. Até é mais seguro.
Como?
Faz com que a cesariana seja menos frequente. Um dos problemas da maquinaria é ser interpretada de forma incorrecta pelos especialistas.
Tem cinco filhos. Como foram os seus partos?
Nasceram todos em casa. Tive um rasgão com o primeiro filho e precisei de pontos, mas fiquei bem, depois disso. O meu quarto filho nasceu muito depressa, em 40 minutos, por isso foi muito doloroso. No quinto, não tivemos tempo para chamar a parteira. O meu marido estava a filmar e só dizia: «Sorri! Sorri!» E foi o que fiz. Não quis pôr as minhas mãos entre as pernas, porque isso ia estragar-lhe o filme. Por isso, o bebé saiu sozinho. Eles podem fazer isto, quando não estão drogados.
A epidural tem essa interferência?
Em princípio, não. A epidural é boa para as mulheres que estejam com muitas dores e que a queiram. No meu tempo, não havia, mas eu teria odiado não sentir. O importante é sentir tudo. Se se aprender a fazer isso, através da respiração e relaxamento, é como uma contemplação com o nosso corpo. É como se o útero fosse o condutor e a mulher o maestro da orquestra.
Consegue-se dirigir essa orquestra, num hospital?
Temos de melhorar o ambiente nos hospitais. No Reino Unido, muita coisa está a mudar. A dor é pior, quando estamos presos e nos sentimos um bocado de carne na mesa. Não adianta dizer que não há dores, mas não tem de ser assim. O parto é um trabalho de músculos. Não é dor, mas há dor. Há cada vez mais mulheres a olhar para o nascimento como um trabalho do seu corpo, sem a ajuda do médico.
O que se observa hoje é exactamente o contrário. As mulheres não pedem partos mais naturais, mas, sim, mais cesarianas, para evitar a dor e o risco.
O que é um parto normal? Não é normal pedir a uma mulher para subir para uma cama e fazer o trabalho de parto deitada. O corpo é da mulher. A escolha deve ser dela. Acho que deve ter o direito de pedir uma cesariana. Mas porque é que elas querem cesarianas? Porque lhes é dito que é mais seguro para o bebé, acham que não vão ter dores, é-lhes garantido um obstetra e pensam que a vagina não será afectada e poderão ter sexo sem problemas.
Porque é que o parto acorda tantos medos?
Para muitas mulheres, a primeira experiência foi traumática. Tenho uma rede de apoio em caso de crise do parto, em que respondemos a pedidos de ajuda. Muitas mulheres sentem-se encurraladas, violadas. Isto é mais frequente quando há muita intervenção médica, em especial no que toca a induzir e a acelerar o trabalho de parto. Algumas têm pesadelos e flashbacks, numa segunda gravidez, e sofrem de stress pós-traumático.
Tem muitas guerras com os médicos?
Não. Nem sempre concordam comigo, mas não estou contra os obstetras. Claro que precisamos deles e alguns são muito bons."
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